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Descaso: e se você achasse ossos humanos no seu quintal?

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Você está reformando o seu imóvel até que se depara com dezenas, centenas, milhares de ossos e arcadas dentárias a poucos centímetros abaixo dos seus pés. Não, não é um filme de terror. Isso realmente aconteceu.

Até 1769, os escravos que chegavam no Rio de Janeiro eram desembarcados na Praça XV. Após essa data, com um aumento considerável no número de escravos que eram traficados, o desembarque foi transferido para o Valongo. Esses Pretos Novos (como eram chamados), com seus corpos esqueléticos e doentes, não chegavam a durar muito mais de um ano. Assim nasceu o Cemitério dos Pretos Novos: aqueles que morriam eram jogados em grandes valas cavadas no chão, sendo enterrados quando essas valas enchiam.

Em 1830, tivemos nossa primeira lei (para inglês ver) cujo objetivo era extinguir o tráfico de escravos. Assim, neste ano, o cemitério foi oficialmente fechado. Estima-se que em 61 anos de operação, o cemitério abrigou de 20 a 30 mil pessoas. O centro do Rio de Janeiro foi crescendo, edifícios foram construídos e memórias de milhares de pretos(as) foram apagadas. Em 1996, na Rua Pedro Ernesto, a casa de número 36 passava por uma reforma, quando foram encontrados os restos mortais desses escravos, onde hoje funcionam um Memorial e um Sítio Arqueológico.

A Igreja Nossa Senhora do Rosário, também no Rio de Janeiro, foi mantida essencialmente por mulheres negras desde a sua fundação em 1640, passando por um incêndio em 1967 e sendo arduamente reconstruída até os dias de hoje. Como em todo lugar, o comércio passa a evoluir ao redor de de grandes Igrejas como esta. Comércio que essencialmente também teve seu início por mulheres negras, dando início ao enorme comércio popular que existe nas redondezas. Dentro dessa Igreja funciona o Museu do Negro que é sempre ameaçado de fechar as portas, que tem ideias para investir mas não tem verba para realizar, existindo ainda somente pelo esforço pela comunidade.

A escravidão acabou em 1888 mesmo ou só passou de grátis para remunerada (e muito mal remunerada)?
Houve muitos atentados contra a humanidade, o mais famoso talvez seja o Holocausto. Mas atentados contra a humanidade ainda acontecem debaixo dos nossos narizes. Em 2012, 56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil. Destas, 30.000 são jovens entre 15 a 29 anos e, desse total, 77% são negros (Fonte: Anistia Internacional). Sabemos que trabalhadores(as) como faxineiros(as), lixeiros(as) e outros serviços consideravelmente menos rentáveis são ocupados por maioria de etnia negra. A escravidão acabou em 1888 mesmo ou só passou de grátis para remunerada (e muito mal remunerada)?

Essas são algumas das memórias que não chegam a ninguém e que estão sendo apagadas com o tempo. Puro descaso. Nada disso significa que não existe preto rico ou que não existe branco pobre, mas quem carrega a barra da marginalização são essencialmente os pretos, isso é fato. E qual o papel do restante da sociedade? Brandar que qualquer um chega onde quiser com seu esforço. Falar de Meritocracia. Que cota é injustiça. Que preto é preguiçoso. Que "não sou preconceituoso, mas... (insira alguma bobagem aqui)". Reclamam que preto é ladrão, que preto é favelado, que preto é pobre. É tudo isso sim. Tudo isso graças à marginalização dessas pessoas herdada e camuflada por uma lei, lá de 1888. E as suas culturas, suas religiões, suas tradições, estão sendo empurradas direto pra debaixo do tapete. Resumindo, sua existência está sendo apagada pela falsa noção de democracia que as pessoas têm. E se isso continuar, não restará nem osso pra contar história.

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