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Portugal e seu sistema escravista: a ordem, o cristianismo e o lucro

Por Jean Baptiste Debret, retirada do livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1834), encontrada aqui.
A guerra era, a princípio, o principal meio de conseguir cativos no império Português, principalmente pela possibilidade desses de oferecer informações estratégicas e/ou de serem vendidos. Até então, o trabalho compulsório em Portugal era aplicado nas regiões em que a mão de obra livre não era suficiente para sustentar as necessidades econômicas, sendo esses indivíduos escravos pertencentes à nobreza, à igreja e/ou a alguns trabalhadores. Segundo o historiador Arthur Saunders, a negociação de escravos negros entre a coroa portuguesa e os príncipes e comerciantes africanos se dá a partir de 1140; daí o poder régio passou a traçar meios de tomar proveito fiscais dessa atividade, regulamentando-a. A escravização passou a ser a matriz do poder econômico português, principalmente com uma maior procura americana a partir de 1500, o que fez com que o preço por escravo aumentasse. 

 A ordem jurídica portuguesa colonial se encontrava compilada nas chamadas Ordenações. Ao analisar esse sistema jurídico de modo a perceber a mudança de “cativo mouro” para “escravo negro”, a historiadora Silva Lara nota uma descontinuidade entre algumas formas de trabalho compulsório no que diz respeito à legislação portuguesa, onde nem sempre “escravo” é tratado como indivíduo subalterno mas sim como referência a africano, enquanto “cativo” seria uma referência ao mouro: o termo “servo” nas Ordenações Afonsinas (1446) se refere ao mouro cativo, enquanto nas Manuelinas (1521) designa tanto aos muçulmanos quanto aos negros.

Lembremos aqui que os mouros, povos oriundos do norte da África, são os povos árabes praticantes do Islão. Os mouros que viviam na Península Ibérica eram majoritariamente descendentes de ibéricos que em um determinado momento se converteram ao Islamismo, o que fazia com que houvesse uma clara diferença étnica entre esses e aqueles mouros que vieram de fato da África.
A quantidade de mouros submetidos ao cativeiro nesse sistema se dava pelo caráter religioso

Já nas Ordenações Filipinas (1603) a palavra “escravo” se refere especificamente aos negros. Isso se dá pelo crescente número de africanos levados das colônias para a Europa. A quantidade de mouros submetidos ao cativeiro nesse sistema se dava pelo caráter religioso: ou eram prisioneiros de guerra ou eram muçulmanos submetidos a cristãos que tinham poder. É claro que o aparato jurídico também se diferenciava: enquanto o mouro poderia ser livre ao converter-se, o negro escravo não teria essa possibilidade, libertando-se apenas pela fuga ou alforria (importante lembrar que alforria é diferente de total liberdade, uma vez que a alforria era apenas uma carta em que o proprietário “abdicava” de seu escravo e este, muitas vezes, continuava a trabalhar para esta mesma pessoa – isso quando o escravo não tinha que “pagar” pela própria alforria; o assunto rende mais um post).

A escravidão da forma que acontecia precisava de uma justificativa. E alegar que o colonialismo escravocrata era um meio eficaz de levar a civilidade da fé Cristã para aquelas almas seria uma boa justificativa, segundo Saunders. Não à toa que o comércio de escravos com príncipes e comerciantes africanos foi autorizado pelo próprio Papa em 1455. 
Alegar que o colonialismo escravocrata era um meio eficaz de levar a civilidade da fé Cristã para aquelas almas seria uma boa justificativa

Ainda assim, Saunders mostra como em diversos aspectos o sistema escravista tinha motivações além das de cristianização. O modo como eram configuradas as frotas dos navios negreiros e as levas de “intérpretes” negros para facilitar as negociações, por exemplo, mostram como as motivações reais visavam os lucros colossais que o tráfico proporcionava: motivações estas completamente opostas às cristãs. Essas críticas emergiram no século XVI, mas ainda assim a coroa portuguesa evidenciava a escravização como benéfico para as almas africanas, o que era suficiente para a manutenção desse sistema.

 Finalmente, Silva Lara também constata que a interpretação de trabalho escravo juridicamente deixava de ser subordinada às imposições religiosas a partir de um certo momento, sendo cada vez mais de caráter comercial e penal. Ela conclui que a exploração colonial, que fazia da escravidão algo cada vez mais fundamental para a economia portuguesa, foi acompanhada de frequentes mudanças na hierarquia social das sociedades ibéricas e, principalmente, reelaborações jurídicas que contemplassem a importância que esse aparato estava tomando.

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